Apresentar este livro
da Margarida não é tarefa fácil e, confesso, fiz três rascunhos antes de chegar
a este que, espero, seja pouco lamechas.
Não, o livro não é
lamechas e a Margarida tão pouco. Eu sou um bocadinho.
Não vos contarei a
história de Leonor e já sabem que o livro aborda as questões de vivência
sistemática com uma doença crónica que afecta – e muito – a qualidade de vida
dos doentes: a artrite reumatóide.
A Leonor é a
personagem principal do livro e é quem sofre desta maleita. E sofre das outras
maleitas que os doentes crónicos têm de acarretar uma vida inteira.
O que são? Não são
apenas os comprimidos, comparticipados ou nem por isso...
Esta semana fomos
informados que os doentes com lúpus – são 15 mil em Portugal – deixam de ter os
medicamentos comparticipados. Não percebi se 15 mil é pouco ou muito para o
Governo. Seja.
As doenças crónicas
têm estes custos que, muitas vezes, os doentes fingem que podem meter debaixo
do tapete. Ou seja: reduzir doses, experimentar medicina alternativa sem ter
feito o desmame dos químicos com pés e cabeça e, cereja no topo do bolo, os
doentes crónicos, por serem obrigados a uma certa teimosia caso queiram passar
o estatuto de vítimas da traição do corpo, esforçam-se mais do que devem, pela
simples razão de pensarem, por horas, que pode ser que o corpo aguenta.
O corpo não aguenta
traições desta dimensão e, sempre que decide fazer um motim, pois recusa-se a
funcionar.
Se a doença não é
visível ou muito evidente – não se está numa cadeira de rodas, não se passa o
dia a tomar pastilhas e a apresentar um rol de queixas sobre “ai que desgraça
que é a minha vida” – então é a sociedade que surge como inimigo.
Esta realidade é
tratada por Margarida Fonseca Santos com cuidado, sem exagero, com a perícia de
quem domina bem o que são as relações humanas, em especial num mercado de
trabalho onde todos somos obrigados a ser multitarefeiros, rápidos,
vertiginosamente rápidos.
Nem sempre os ossos
deixam, nem sempre a cabeça consegue.
Portanto, dirão: ah, é
um livro sobre a doença.
Não.
Mesmo correndo o risco
de ter de fazer terrorismo literário e de recolocar os livros da Margarida na
zona da ficção nacional em vez de estarem na prateleira da saúde (e aqui, faço
um aparte vicentino: abençoados livreiros que colocam os livros sem pensar
muito no assunto, afinal publicam-se 50 livros por dia num país em que se diz
que a malta não lê e não compra, portanto que importa que a ficção vá parar à
saúde ou à gastronomia?)
Bom, dizia eu,
correndo esse risco e até de ver a autora olhar para mim com ar de espanto,
tipo: “eu deveria ter convidado outra pessoa para me apresentar o livro, afinal
levei tanto tempo a ter a coragem para esta exposição”, aqui vai a minha ideia
sobre este livro:
Este, tão bem escrito,
tão fluído e com boas caracterizações de personagens, este livro é sobre o que
temos de melhor. A melhor expressão de amor: a amizade.
Não apenas a amizade
entre Leonor e a Maria, mas também a de outras personagens que vão surgindo, o
médico, a enfermeira, um namorado que não sendo namorado quer muito ser
namorado e por aí fora.
Como dito, não vou
contar a história, façam o favor de comprar e ler e oferecer. Vem aí o Natal,
não tarda nada, que isto é tudo num instante.
Este livro da
Margarida é um exercício de alto risco, de exposição. De altíssimo
risco. Para uma mulher é sempre mais complicado escrever sobre
determinados assuntos.
Digo muitas vezes que
se um homem escrever uma história de amor, pois é sobre a condição humana, se
for uma mulher? Bom, é mais um livro.
Se o Lobo Antunes
escrever sobre o cancro, é um grande escritor em sofrimento, capaz de uma
exposição comovente. Uma mulher? Bom, as mulheres nasceram para sofrer e, dizem
alguns, não é por acaso que a maioria das doenças auto imunes afectam em mais
de 90 por cento as mulheres e não os homens. É a nossa cabecinha. Pois.
Seja como for, a
literatura feminina não é de agora, temos apenas a felicidade de não ter de
escrever com tinta mágica, feita com sumo de limão, para explicar como olhamos
o mundo.
Um livro é sempre
isso, uma forma de ver o mundo, uma tentativa de resposta a uma pergunta ou,
para citar Agustina Bessa-Luís, fica sempre bem, pois um livro escreve-se para
incomodar. E este incomoda.
De zero a dez incomoda
doze, se a alma for sensível. Por ser uma história que é feita de afectos, de
avanços e recuos, mergulhada no nosso tempo, é sobre nós, sobre uma doença que
pode ser minha ou vossa e ainda sobre as teias de mãos amigas que nos
sustentam. Que fazem da vida isso mesmo: vida digna de se viver.
Uma pessoa com uma
doença, infelizmente, pensa muitas vezes que não merece ser feliz.
Que não merece rir.
Divertir-se. Beber um
copo e abanar o corpo.
Pensa semelhante
disparate por ser disparatada? Não.
Pensa por saber que há
quem possa fazer tudo isto e mais – até ter uma vida sexual ardente contra a
parede, como nos filmes, aquelas coisas que nunca nos acontecem, mas ficam bem
na tela da sétima arte.
O sentimento é: não
posso impor aos outros as minhas limitações.
O livro da Margarida
conclui: há pessoas que respeitam as limitações, as maleitas, as receitas, os
exames e, apesar disso, não encaram uma doente, neste caso, a Leonor, como
alguém descartável.
E não abdicam de
ajudar e de rir.
Rir é uma grande
bênção. É pena que não seja uma doença crónica.

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